sábado, 4 de julho de 2015

Cultura autogestionária

Nas últimas semanas, por meio da Livraria 36, participei de atividades ligadas ao teatro comunitário e social em Joinville. Nos dois eventos, conversamos sobre diferentes aspectos da relação do teatro com a cidade, do teatro com a esquerda e outros pontos. O pensamento dominante no povo do teatro é a esquerda como unitária e com base em leituras datadas no passado. Me parece que falta ampliar a leitura para outros pontos e aspectos da esquerda, como a de caráter anarquista. Por conta disso, publico um fragmento do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, de Felipe Corrêa. O trecho é um estímulo para debater sobre a cultura do ponto de vista anarquista. 


"4.3.2.4 Cultura autogestionária*

Juntamente com as propostas para a economia e a política, o anarquismo, historicamente, preocupou-se com a esfera ideológica/cultural.[i]  Sakae (apud Pelletier, 2004, p. 234) afirma, em 1919: “por mais operários que sejamos, a situação não se resume a comer bem. Temos reivindicações que vão mais longe.” Essa afirmação envolve uma condição, comum entre os anarquistas, de compreender o conjunto de necessidades humanas para além dos aspectos materiais. Se a religião, a educação e, mais recentemente, a mídia, vêm sendo responsáveis por legitimar a dominação, o anarquismo propõe uma cultura distinta, que legitime sua proposta de autogestão.


Espaço de criação e produção dos cartazes estudantis e operários na revolta no mês de maio, em 1968, em Paris.

Para os anarquistas, a autogestão econômica e política deve ser acompanhada de uma cultura autogestionária, forjada em bases ideológicas e em uma ética pautada em valores, capaz de sustentar seu projeto econômico e político – algo que Bakunin (1972, p. 249) chamou de uma “nova fé”, e o coreano Chaeho (2005, p. 375) de “cultura das massas”, a qual deveria “destruir pensamentos culturais servis”.

Rudolf de Jong (2008, p. 63), anarquista holandês, também trata do tema, em 1975, ao enfatizar que “no anarquismo, os valores humanos desempenham uma parte importante”. Essa ética anarquista é o elemento universal promovido transversalmente em todos os contextos, pautada, no caso de uma sociedade futura, com a autogestão funcionando plenamente, nos seguintes valores: liberdade individual e coletiva, no sentido de desenvolvimento pleno das faculdades, capacidades e pensamento crítico de cada um e de todos, fora da dominação; igualdade, em termos econômicos, políticos e sociais, promovida por meio da autogestão e incluindo questões de gênero e raça; solidariedade e apoio mútuo, sustentando relações fraternas e colaborativas entre as pessoas e não de individualismo e competição; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.

Manifestação contra o aumento da tarifa do transporte coletivo em Joinville, em 2014. Fotografia do Renan B. 


Harrison (1947), nesse sentido, escreve: “devemos expandir as associações voluntárias de acordo com nossos interesses comuns para a inovação científica e a produção do belo e para ampliar nossas liberdades sociais”. A intervenção dos anarquistas de acordo com esses valores éticos deve fortalecer as associações, de maneira a promover a cultura autogestionária defendida pelos anarquistas.

Um dos aspectos muito desenvolvidos no anarquismo foi a educação, por meio da discussão sobre a pedagogia libertária. Reclus (2002, p. 108) explica, em 1897: “o ideal dos anarquistas não é suprimir a escola, ao contrário, fazê-la crescer, fazer da própria sociedade um imenso organismo de ensinamento mútuo, onde todos seriam simultaneamente alunos e professores”. Essa ampliação da educação, estendendo-a ao conjunto da sociedade, é fundamental para estimular os valores condizentes com a prática da autogestão.

Tal educação é, ao mesmo tempo, integral, pois busca fortalecer completamente o desenvolvimento individual: intelectualmente, por meio do conhecimento científico das distintas áreas da vida e do estímulo permanente à cultura; tecnicamente, preparando para o trabalho e capacitando para a realização de tarefas manuais e intelectuais; fisicamente, tendo por objetivo promover a saúde e bem-estar.

O anarquista espanhol Francisco Ferrer y Guardia enfatiza, em 1908, que o objetivo anarquista na educação é criar

homens capazes de evoluir incessantemente; capazes de destruir, de renovar constantemente os meios, renovar-se a si mesmos; homens cuja independência intelectual seja a força suprema, que nunca se sujeitem ao que quer que seja; dispostos a aceitar sempre o melhor, felizes pelo triunfo das novas idéias e que aspirem a viver vidas múltiplas em uma única vida. (Ferrer y Guardia, 2006, p. 67-68)

O conceito-chave da pedagogia libertária é a promoção da educação por meio da liberdade e para a liberdade, criando permanentemente uma humanidade completa, com corpo e mente plenamente satisfeitos.

Eduardo Bez, do Grupo Morro do Ouro, declama as suas poesias no Sarau 1º de maio, em Joinville, no ano de 2015.

Também faz parte dessa cultura autogestionária o investimento em lazer. Se, por um lado, o trabalho e as decisões estão no centro da sociedade autogestionária, o lazer possui, simultaneamente, lugar de destaque. No tempo livre, os anarquistas consideram fundamental a participação em atividades que envolvem esportes, artes, música, televisão, cinema, teatro, etc., tanto para o descanso, como para a própria instrução cultural. Os valores citados anteriormente constituem os fundamentos dessa produção popular e autogestionária do lazer. Evidentemente, os meios de comunicação defendidos pelos anarquistas são autogeridos, possuem ampla participação e, pautados nos valores anarquistas, promovem a diversidade e o pensamento crítico, informando, discutindo, divertindo. A ética promovida permanentemente por meio dos valores, a educação e o lazer constituem as bases da cultura autogestionária, essa “nova fé”, capaz de dar a sustentação subjetiva para a construção do projeto objetivo anarquista.




·        *  Fragmento de leitura do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa. É possível baixar o livro completo aqui ou comprar aqui. As referências citadas no fragmento estão nos links que mencionei nas linhas anteriores. Em caso de dúvidas, basta escrever para maikon.jean.duarte@gmail.com

[i] Silva (2005, p. 3), refletindo sobre o papel da cultura no anarquismo, afirmou: “Para se compreender o movimento anarquista [...] é preciso ter em mente que, apesar dos homens e mulheres que os configurava serem, em sua maioria, trabalhadores, não se pode resumir sua atuação ao âmbito sindical. A intensa e inovadora produção artística e literária sempre foram marcas dos anarquistas. [...] Nas relações interpessoais, na conduta moral, no trabalho, na educação, nos contatos afetivos, em todos os campos o anarquismo se manifesta. Ele se pratica nas ruas, no sindicato, no teatro, na fábrica e em casa. Assim, para além de um movimento, há uma cultura anarquista.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário