Nas últimas semanas, por meio da
Livraria 36, participei de atividades ligadas ao teatro comunitário e social em
Joinville. Nos dois eventos, conversamos sobre diferentes aspectos da relação do teatro com a cidade, do teatro com a esquerda e outros pontos. O
pensamento dominante no povo do teatro é a esquerda como unitária e com
base em leituras datadas no passado. Me parece que falta ampliar a leitura para outros
pontos e aspectos da esquerda, como a de caráter anarquista. Por conta disso, publico um
fragmento do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, de Felipe
Corrêa. O trecho é um estímulo para debater sobre a cultura do ponto de vista
anarquista.
"4.3.2.4 Cultura autogestionária*
Juntamente com as propostas para a
economia e a política, o anarquismo, historicamente, preocupou-se com a esfera
ideológica/cultural.[i] Sakae (apud Pelletier, 2004, p. 234) afirma,
em 1919: “por mais operários que sejamos, a situação não se resume a comer bem.
Temos reivindicações que vão mais longe.” Essa afirmação envolve uma condição,
comum entre os anarquistas, de compreender o conjunto de necessidades humanas
para além dos aspectos materiais. Se a religião, a educação e, mais
recentemente, a mídia, vêm sendo responsáveis por legitimar a dominação, o
anarquismo propõe uma cultura distinta, que legitime sua proposta de
autogestão.
Espaço de criação e produção dos cartazes estudantis e operários na revolta no mês de maio, em 1968, em Paris.
Para os anarquistas, a autogestão
econômica e política deve ser acompanhada de uma cultura autogestionária,
forjada em bases ideológicas e em uma ética pautada em valores, capaz de
sustentar seu projeto econômico e político – algo que Bakunin (1972, p. 249)
chamou de uma “nova fé”, e o coreano Chaeho (2005, p. 375) de “cultura das
massas”, a qual deveria “destruir pensamentos culturais servis”.
Rudolf de Jong (2008, p. 63),
anarquista holandês, também trata do tema, em 1975, ao enfatizar que “no
anarquismo, os valores humanos desempenham uma parte importante”. Essa ética
anarquista é o elemento universal promovido transversalmente em todos os
contextos, pautada, no caso de uma sociedade futura, com a autogestão
funcionando plenamente, nos seguintes valores: liberdade individual e coletiva,
no sentido de desenvolvimento pleno das faculdades, capacidades e pensamento
crítico de cada um e de todos, fora da dominação; igualdade, em termos
econômicos, políticos e sociais, promovida por meio da autogestão e incluindo
questões de gênero e raça; solidariedade e apoio mútuo, sustentando relações
fraternas e colaborativas entre as pessoas e não de individualismo e
competição; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.
Manifestação contra o aumento da tarifa do transporte coletivo em Joinville, em 2014. Fotografia do Renan B.
Harrison (1947), nesse sentido,
escreve: “devemos expandir as associações voluntárias de acordo com nossos
interesses comuns para a inovação científica e a produção do belo e para
ampliar nossas liberdades sociais”. A intervenção dos anarquistas de acordo com
esses valores éticos deve fortalecer as associações, de maneira a promover a
cultura autogestionária defendida pelos anarquistas.
Um dos aspectos muito desenvolvidos
no anarquismo foi a educação, por meio da discussão sobre a pedagogia
libertária. Reclus (2002, p. 108) explica, em 1897: “o ideal dos anarquistas
não é suprimir a escola, ao contrário, fazê-la crescer, fazer da própria
sociedade um imenso organismo de ensinamento mútuo, onde todos seriam
simultaneamente alunos e professores”. Essa ampliação da educação, estendendo-a
ao conjunto da sociedade, é fundamental para estimular os valores condizentes
com a prática da autogestão.
Tal educação é, ao mesmo tempo,
integral, pois busca fortalecer completamente o desenvolvimento individual:
intelectualmente, por meio do conhecimento científico das distintas áreas da
vida e do estímulo permanente à cultura; tecnicamente, preparando para o
trabalho e capacitando para a realização de tarefas manuais e intelectuais;
fisicamente, tendo por objetivo promover a saúde e bem-estar.
O anarquista espanhol Francisco
Ferrer y Guardia enfatiza, em 1908, que o objetivo anarquista na educação é
criar
homens
capazes de evoluir incessantemente; capazes de destruir, de renovar
constantemente os meios, renovar-se a si mesmos; homens cuja independência
intelectual seja a força suprema, que nunca se sujeitem ao que quer que seja;
dispostos a aceitar sempre o melhor, felizes pelo triunfo das novas idéias e
que aspirem a viver vidas múltiplas em uma única vida. (Ferrer y
Guardia, 2006, p. 67-68)
O conceito-chave da pedagogia
libertária é a promoção da educação por meio da liberdade e para a liberdade,
criando permanentemente uma humanidade completa, com corpo e mente plenamente
satisfeitos.
Eduardo Bez, do Grupo Morro do Ouro, declama as suas poesias no Sarau 1º de maio, em Joinville, no ano de 2015.
Também faz parte dessa cultura
autogestionária o investimento em lazer. Se, por um lado, o trabalho e as
decisões estão no centro da sociedade autogestionária, o lazer possui,
simultaneamente, lugar de destaque. No tempo livre, os anarquistas consideram
fundamental a participação em atividades que envolvem esportes, artes, música,
televisão, cinema, teatro, etc., tanto para o descanso, como para a própria
instrução cultural. Os valores citados anteriormente constituem os fundamentos
dessa produção popular e autogestionária do lazer. Evidentemente, os meios de
comunicação defendidos pelos anarquistas são autogeridos, possuem ampla
participação e, pautados nos valores anarquistas, promovem a diversidade e o
pensamento crítico, informando, discutindo, divertindo. A ética promovida
permanentemente por meio dos valores, a educação e o lazer constituem as bases
da cultura autogestionária, essa “nova fé”, capaz de dar a sustentação subjetiva
para a construção do projeto objetivo anarquista.
· * Fragmento de leitura do livro “Bandeira Negra:
rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa. É possível baixar o livro completo aqui ou comprar aqui. As referências citadas no fragmento estão nos
links que mencionei nas linhas anteriores. Em caso de dúvidas, basta escrever
para maikon.jean.duarte@gmail.com
[i] Silva
(2005, p. 3), refletindo sobre o papel da cultura no anarquismo, afirmou: “Para
se compreender o movimento anarquista [...] é preciso ter em mente que, apesar
dos homens e mulheres que os configurava serem, em sua maioria, trabalhadores,
não se pode resumir sua atuação ao âmbito sindical. A intensa e inovadora
produção artística e literária sempre foram marcas dos anarquistas. [...] Nas
relações interpessoais, na conduta moral, no trabalho, na educação, nos
contatos afetivos, em todos os campos o anarquismo se manifesta. Ele se pratica
nas ruas, no sindicato, no teatro, na fábrica e em casa. Assim, para além de um
movimento, há uma cultura anarquista.”
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