terça-feira, 18 de agosto de 2015

Princípios político-ideológicos do anarquismo

“Opa. Você tem um texto básico sobre anarquismo?” É uma mensagem que recebo com frequência. Caso tenha conhecimento do hábito de leitura de quem realiza a solicitação, eu logo sugiro o livro “No Café” ou “Anarquismo e anarquia”, os dois do anarquista Malatesta.

O pedido também é realizado de outra forma, como “Tem alguma leitura rápida para ter uma noção bem básica sobre anarquismo?” Aí ferrou. Eu nunca sei o que indicar. Lendo o livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa*, um fragmento será a sugestão daqui para frente. Segue;

Princípios político-ideológicos do anarquismo

Por meio da definição de anarquismo apresentada e discutida neste capítulo, pode-se estabelecer um conjunto de princípios político-ideológicos, que permite sumarizá-la. Trata-se, assim, de uma síntese das posições colocadas, de maneira a formular princípios que constituem as bases da ideologia anarquista.

Ética e valores - A defesa de uma concepção ética, capaz de subsidiar críticas e proposições racionais, pautada nos seguintes valores: liberdade individual e coletiva; igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; solidariedade e apoio mútuo; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.

Crítica da dominação - A crítica das dominações da classe – constituídas por exploração, coação física e dominações político-burocrática e cultural-ideológica – e de outros tipos de dominação (gênero, raça, imperialismo, etc.).

Transformação social do sistema e do modelo de poder - O reconhecimento de que as estruturas sistêmicas fundamentadas em distintas dominações constituem sistemas de dominação e a identificação, por meio de uma crítica racional, fundamentada nos valores éticos especificados, de que esse sistema tem de ser transformado em um sistema de autogestão. Para isso, torna-se fundamental a transformação do modelo de poder vigente, de um poder dominador, em um poder autogestionário. Nas sociedades contemporâneas, essa crítica da dominação implica uma oposição clara ao capitalismo, ao Estado e às outras instituições criadas e sustentadas para a manutenção da dominação.

Classes e luta de classes - A identificação de que, nos diversos sistemas de dominação, com suas respectivas estruturas de classes, as dominações de classe permitem conceber a divisão fundamental da sociedade em duas grandes categorias globais e universais, constituídas por classes com interesses inconciliáveis: as classes dominantes e as classes dominadas. O conflito social entre essas classes caracteriza a luta de classes. O anarquismo surge como uma ideologia das classes dominadas e tem por objetivo impulsionar essa transformação que implica, para a construção de um poder autogestionário, o fim das classes sociais, a ser levado a cabo em um tipo de socialismo ao qual se chega por meio de uma revolução social. Outras dominações devem ser combatidas concomitantemente  às dominações de classe, sendo que o fim das últimas não significa, obrigatoriamente, o fim das primeiras.

Classismo e força social - A compreensão de que essa transformação social de base classista implica uma prática política, constituída a partir da intervenção na correlação de forças que constitui as bases das relações de poder vigentes. Busca-se, nesse sentido, transformar a capacidade de realização dos agentes sociais que são membros das classes dominadas em força social, aplicando-a na luta de classes e buscando aumentá-la permanentemente. Esse aumento permanente de força social pode ser buscado por meio das práticas junto a agentes dominados em termos de raça, gênero, nacionalidade, mas, nesses casos, essa luta exige uma perspectiva classista e internacionalista, permanente em toda a prática anarquista.

Internacionalismo  - A defesa de um classismo que não se restrinja às fronteiras nacionais e que, por isso, fundamente-se no internacionalismo, o qual implica, no caso das práticas junto a agentes dominados por relações imperialistas, a rejeição do nacionalismo e, nas lutas pela transformação social, a necessidade de ampliação da mobilização das classes dominadas para além das fronteiras nacionais. O projeto revolucionário anarquista prevê uma necessidade de internacionalização da revolução, de maneira a dar condições de existência à autogestão generalizada.

Estratégia - A concepção racional, para esse projeto de transformação social, de estratégias adequadas, que implicam leituras da realidade e o estabelecimento de caminhos para as lutas. Ainda que o método de análise e as teorias não constituam critérios para definir o anarquismo, e nem mesmo critérios para definição de suas correntes, eles sempre são elaborados racionalmente e utilizados, em distintas perspectivas, de acordo com a localidade e a época em que atuam os anarquistas, acompanhando essa perspectiva geográfica e histórica. O objetivo, de tipo finalista, de se chegar a um socialismo que se caracteriza por um sistema de autogestão e um poder autogestionário está sempre presente como perspectiva e projeto dos anarquistas. O caminho para essa transformação é sempre concebido em termos estratégicos.

Elementos estratégicos  - Ainda que os anarquistas defendam estratégias distintas, alguns elementos estratégicos são considerados princípios: o estímulo à criação de sujeitos revolucionários, mobilizados entre os agentes que constituem parte das classes sociais concretas de cada época e localidade, as quais dão corpo às classes dominadas, a partir de processos que envolvem a consciência de classe e do estímulo à vontade de transformação; o estímulo permanente ao aumento de força social das classes dominadas, de maneira a permitir um processo revolucionário de transformação social; a coerência entre objetivos, estratégias e táticas e, por isso, a coerência entre fins e meios e a construção, nas práticas de hoje, da sociedade que se quer amanhã; a utilização de meios autogestionários de luta que não impliquem a dominação, seja entre os próprios anarquistas ou na relação dos anarquistas com outros agentes; a defesa da independência e da autonomia de classe, que implica a recusa às relações de dominação estabelecidas com partidos políticos, Estado ou outras instituições ou agentes, garantindo o protagonismo popular das classes dominadas, o qual deve ser promovido por meio da construção da luta pela base, de baixo para cima, envolvendo a ação direta.

Revolução social e violência  - A busca de uma revolução social, que transforme o sistema e o modelo de poder vigentes, sendo que a violência, como expressão de um nível mais acirrado de confronto, é aceita, na maioria dos casos, por ser considerada inevitável. Essa revolução implica lutas combativas e mudanças de fundo nas três esferas estruturadas da sociedade e não se encontra dentro dos marcos do sistema de dominação presente – está além do capitalismo, do Estado, das instituições dominadoras.

Defesa da autogestão - A defesa da autogestão que fundamenta a prática política e a estratégia anarquistas constitui as bases para a sociedade futura que se deseja construir e envolve socialização da propriedade em termos econômicos, o autogoverno democrático em termos políticos e uma cultura autogestionária. Norteada pelos valores da ética anarquista, essa sociedade é necessariamente socialista e garante a todos liberdade individual e coletiva; igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; solidariedade e apoio mútuo; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.


*O texto é um fragmento retirado e adaptado do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa. Editora Prisma, Curitiba. 2015.

sábado, 1 de agosto de 2015

Depois de Nina

"Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, isso é o meu dever, e neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando tenta apenas sobreviver cada dia, não tem como não se envolver. Jovens brancos e negros sabem disso, e é por isso que estão tão envolvidos com a política. Vamos modelar e dar forma a este país ou ele não será nem modelado nem receberá forma alguma.  Não se tem escolha... Como ser artista e não refletir a época?"

Nina Simone.