“Opa. Você tem um texto básico
sobre anarquismo?” É uma mensagem que recebo com frequência. Caso tenha
conhecimento do hábito de leitura de quem realiza a solicitação, eu logo sugiro
o livro “No Café” ou “Anarquismo e anarquia”, os dois do anarquista Malatesta.
O pedido
também é realizado de outra forma, como “Tem alguma leitura rápida para ter uma
noção bem básica sobre anarquismo?” Aí ferrou. Eu nunca sei o que indicar.
Lendo o livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa*,
um fragmento será a sugestão daqui para frente. Segue;
Princípios político-ideológicos do
anarquismo
Por meio da definição de anarquismo
apresentada e discutida neste capítulo, pode-se estabelecer um conjunto de
princípios político-ideológicos, que permite sumarizá-la. Trata-se, assim, de
uma síntese das posições colocadas, de maneira a formular princípios que
constituem as bases da ideologia anarquista.
Ética
e valores - A defesa de uma concepção ética, capaz de subsidiar críticas
e proposições racionais, pautada nos seguintes valores: liberdade individual e
coletiva; igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; solidariedade e
apoio mútuo; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.
Crítica
da dominação - A crítica das dominações da classe – constituídas
por exploração, coação física e dominações político-burocrática e cultural-ideológica
– e de outros tipos de dominação (gênero, raça, imperialismo, etc.).
Transformação
social do sistema e do modelo de poder - O reconhecimento de que as
estruturas sistêmicas fundamentadas em distintas dominações constituem sistemas
de dominação e a identificação, por meio de uma crítica racional, fundamentada
nos valores éticos especificados, de que esse sistema tem de ser transformado
em um sistema de autogestão. Para isso, torna-se fundamental a transformação do
modelo de poder vigente, de um poder dominador, em um poder autogestionário.
Nas sociedades contemporâneas, essa crítica da dominação implica uma oposição
clara ao capitalismo, ao Estado e às outras instituições criadas e sustentadas
para a manutenção da dominação.
Classes
e luta de classes - A identificação de que, nos diversos sistemas de
dominação, com suas respectivas estruturas de classes, as dominações de classe
permitem conceber a divisão fundamental da sociedade em duas grandes categorias
globais e universais, constituídas por classes com interesses inconciliáveis:
as classes dominantes e as classes dominadas. O conflito social entre essas
classes caracteriza a luta de classes. O anarquismo surge como uma ideologia
das classes dominadas e tem por objetivo impulsionar essa transformação que
implica, para a construção de um poder autogestionário, o fim das classes
sociais, a ser levado a cabo em um tipo de socialismo ao qual se chega por meio
de uma revolução social. Outras dominações devem ser combatidas
concomitantemente às dominações de
classe, sendo que o fim das últimas não significa, obrigatoriamente, o fim das
primeiras.
Classismo
e força social - A compreensão de que essa transformação social de
base classista implica uma prática política, constituída a partir da
intervenção na correlação de forças que constitui as bases das relações de
poder vigentes. Busca-se, nesse sentido, transformar a capacidade de realização
dos agentes sociais que são membros das classes dominadas em força social,
aplicando-a na luta de classes e buscando aumentá-la permanentemente. Esse
aumento permanente de força social pode ser buscado por meio das práticas junto
a agentes dominados em termos de raça, gênero, nacionalidade, mas, nesses
casos, essa luta exige uma perspectiva classista e internacionalista,
permanente em toda a prática anarquista.
Internacionalismo - A defesa de um classismo que não se
restrinja às fronteiras nacionais e que, por isso, fundamente-se no
internacionalismo, o qual implica, no caso das práticas junto a agentes
dominados por relações imperialistas, a rejeição do nacionalismo e, nas lutas
pela transformação social, a necessidade de ampliação da mobilização das
classes dominadas para além das fronteiras nacionais. O projeto revolucionário
anarquista prevê uma necessidade de internacionalização da revolução, de
maneira a dar condições de existência à autogestão generalizada.
Estratégia
-
A concepção racional, para esse projeto de transformação social, de estratégias
adequadas, que implicam leituras da realidade e o estabelecimento de caminhos
para as lutas. Ainda que o método de análise e as teorias não constituam
critérios para definir o anarquismo, e nem mesmo critérios para definição de
suas correntes, eles sempre são elaborados racionalmente e utilizados, em
distintas perspectivas, de acordo com a localidade e a época em que atuam os
anarquistas, acompanhando essa perspectiva geográfica e histórica. O objetivo,
de tipo finalista, de se chegar a um socialismo que se caracteriza por um
sistema de autogestão e um poder autogestionário está sempre presente como
perspectiva e projeto dos anarquistas. O caminho para essa transformação é
sempre concebido em termos estratégicos.
Elementos
estratégicos - Ainda que
os anarquistas defendam estratégias distintas, alguns elementos estratégicos
são considerados princípios: o estímulo à criação de sujeitos revolucionários,
mobilizados entre os agentes que constituem parte das classes sociais concretas
de cada época e localidade, as quais dão corpo às classes dominadas, a partir
de processos que envolvem a consciência de classe e do estímulo à vontade de
transformação; o estímulo permanente ao aumento de força social das classes
dominadas, de maneira a permitir um processo revolucionário de transformação
social; a coerência entre objetivos, estratégias e táticas e, por isso, a
coerência entre fins e meios e a construção, nas práticas de hoje, da sociedade
que se quer amanhã; a utilização de meios autogestionários de luta que não
impliquem a dominação, seja entre os próprios anarquistas ou na relação dos
anarquistas com outros agentes; a defesa da independência e da autonomia de
classe, que implica a recusa às relações de dominação estabelecidas com
partidos políticos, Estado ou outras instituições ou agentes, garantindo o
protagonismo popular das classes dominadas, o qual deve ser promovido por meio
da construção da luta pela base, de baixo para cima, envolvendo a ação direta.
Revolução
social e violência - A busca de
uma revolução social, que transforme o sistema e o modelo de poder vigentes, sendo
que a violência, como expressão de um nível mais acirrado de confronto, é
aceita, na maioria dos casos, por ser considerada inevitável. Essa revolução
implica lutas combativas e mudanças de fundo nas três esferas estruturadas da
sociedade e não se encontra dentro dos marcos do sistema de dominação presente
– está além do capitalismo, do Estado, das instituições dominadoras.
Defesa
da autogestão - A defesa da autogestão que fundamenta a prática
política e a estratégia anarquistas constitui as bases para a sociedade futura
que se deseja construir e envolve socialização da propriedade em termos
econômicos, o autogoverno democrático em termos políticos e uma cultura
autogestionária. Norteada pelos valores da ética anarquista, essa sociedade é
necessariamente socialista e garante a todos liberdade individual e coletiva;
igualdade em termos econômicos, políticos e sociais; solidariedade e apoio
mútuo; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.
*O
texto é um fragmento retirado e adaptado do livro “Bandeira Negra: rediscutindo
o anarquismo”, do Felipe Corrêa. Editora Prisma, Curitiba. 2015.