No período de férias li alguns contos escritos por Jack London, célebre escritor e socialista dos EUA. O post de hoje é o conto "O que a vida significa para mim", publicado pela Editora Expressão Popular.
O
que a vida significa para mim
Jack London.
Nasci
na classe trabalhadora. Cedo descobri o entusiasmo, a ambição e os ideais; e
satisfazê-los tornou-se o problema da minha infância. Meu ambiente era cru,
áspero e rude. Não via nenhuma perspectiva ao meu redor, por isso, o melhor era
olhar para cima. Meu lugar na sociedade era nos fundos. Aqui a vida não
oferecia nada, além de sordidez e miséria, tanto para o corpo como para o
espírito. Por aqui corpo e espírito andavam famintos e atormentados.
Acima
de mim se erguia o imenso edifício da sociedade e, em minha mente, a única
saída era para cima. Logo resolvi subir. Lá em cima, os homens vestiam ternos
pretos e camisas engomadas e as mulheres usavam vestidos lindos. Havia também
coisas boas para comer e muita fartura. Abundância para o corpo. Depois havia
as coisas do espírito. Acima de mim, eu sabia, havia despojamento do espírito,
pensamentos puros e nobres e uma vida intelectual intensa. Eu conhecia tudo
isto porque lera romances na biblioteca Seaside, nos quais, com exceção dos
vilões e dos aventureiros, todos os homens e mulheres tinham pensamentos puros,
falavam uma linguagem bonita e realizavam ações generosas. Em resumo, assim
como eu aceitava o nascer do Sol, aceitava que acima de mim estava tudo o que
era fino, nobre e belo, tudo o que dá decência e dignidade à vida, tudo o que
faz a vida valer a pena e recompensa um homem por seu sofrimento e esforço.
Mas
não é muito fácil para um homem ascender e sair da classe trabalhadora -
especialmente se está cheio de ambições e ideais. Eu vivia num rancho na
Califórnia, e era duro descobrir o caminho para subir. Cedo quis saber qual a
taxa de juros do dinheiro aplicado, e preocupava meu cérebro de criança a
compreensão das virtudes e excelências desta notável invenção do homem, os
juros compostos. Mais tarde conheci os níveis de salário praticados para
trabalhadores de todas as idades, e o custo de vida. Com todos estes dados,
conclui que, se começasse imediatamente, trabalhasse e poupasse até os cinquenta
anos, poderia parar de trabalhar e desfrutar de uma pequena porção das delícias
e maravilhas que estariam a meu alcance um pouco acima na sociedade. E, claro,
decidi não me casar, ao mesmo tempo em que me esquecia inteiramente de
considerar esta grande causa da catástrofe no universo da classe trabalhadora -
a doença.
Mas
a vida que havia em mim exigia mais que uma pobre existência de restos e de
escassez. Aos dez anos de idade, tornei-me jornaleiro nas ruas da cidade e
descobri uma nova perspectiva. Tudo ao meu redor estava impregnado da mesma
sordidez e desgraça, e acima de mim existia ainda o mesmo paraíso, esperando
para ser conquistado. Mas o caminho para subir era diferente. Era o mundo dos
negócios. Por que poupar meus ganhos e investir em papéis do governo quando,
comprando dois jornais por cinco centavos, num piscar de olhos, podia vendê-los
por dez e dobrar meu capital? O mundo dos negócios era para mim o meio de subir
na vida, e eu me via como negociante quadrado e bem-sucedido.
Ai
das visões! Quando tinha dezesseis anos me chamavam de “príncipe”. Este título
me foi dado por uma gangue de assassinos e ladrões, que me chamavam de “O
príncipe dos piratas de água doce”.
Naquele
tempo eu tinha galgado o primeiro degrau no mundo dos negócios. Era um
capitalista. Possuía um barco e uma tripulação completa de piratas de água
doce. Tinha começado a explorar meus semelhantes. Toda uma equipe estava sob
meu comando. Como capitão e dono, ficava com dois terços do dinheiro e dava à
tripulação o outro terço, embora eles trabalhassem tão duro quanto eu e
arriscassem tanto quanto eu suas vidas e sua liberdade.
Este
degrau foi o último que subi no mundo dos negócios. Uma noite, participei de um
assalto a pescadores chineses. Suas linhas e redes valiam dólares e centavos.
Era um roubo, claro, mas era este precisamente o espírito do capitalista. O
capitalismo toma os bens de seus semelhantes a título de reembolso, traindo a
confiança ou comprando senadores e juizes de tribunais superiores. Eu era apenas
mais grosseiro. Essa era a única diferença. Eu usava um revólver.
Mas,
naquela noite, minha equipe agiu como aqueles incompetentes que o capitalista
está acostumado a fulminar, sem dúvida porque estes incompetentes aumentam os
custos e reduzem os lucros. Minha quadrilha fez as duas coisas. Por falta de
cuidado, tocou fogo na vela principal, destruindo-a totalmente. Não houve lucro
aquela noite, e os pescadores chineses ficaram mais ricos pelas redes e linhas
que não pagamos. Eu estava arruinado, sem condições sequer de pagar sessenta e
cinco dólares por uma nova vela principal. Deixei meu barco ancorado e saí num
barco de piratas na baía para uma viagem de saques pelo rio Sacramento.
Enquanto estava fora, outro bando de piratas da baía saqueou meu barco.
Roubaram tudo, até mesmo as âncoras; e mais tarde, quando recuperei o casco
abandonado, obtive apenas vinte dólares por ele. Tinha descido o primeiro
degrau galgado, e nunca mais tentei o caminho dos negócios.
Desde
então fui implacavelmente explorado por outros capitalistas. Tinha força
física, e eles faziam dinheiro com isso enquanto que, apesar do meu esforço, eu
levava uma vida banal. Fui marinheiro, estivador e grumete. Trabalhei em
fábricas de enlatados, indústrias e lavanderias. Cortei grama, limpei tapetes e
lavei janelas. E não ganhava nunca o produto inteiro do meu trabalho. Olhava
para a filha do dono da fábrica de enlatados, em sua carruagem, e sabia que
eram meus músculos que ajudavam a empurrar aquela carruagem em seus pneus de
borracha. Via o filho do industrial indo para a escola e sabia que era em parte
a minha força que ajudava a pagar seu vinho e suas boas amizades.
Mas
não ficava ressentido com isso. Fazia parte do jogo. Eles eram a força. Muito
bem, eu era forte. Podia cavar um lugar entre eles e fazer dinheiro com a força
de outros homens. Não tinha medo do trabalho. E quanto mais duro, melhor, mais
me agradava. Gostaria de me entregar ao trabalho, trabalhar mais do que nunca
e, eventualmente, me tornar um pilar da sociedade.
E
a essa altura, com a sorte que eu gostaria de ter, descobri um patrão com a
mesma mentalidade. Eu estava querendo trabalhar, e ele estava mais que querendo
que eu trabalhasse. Pensei que estava aprendendo um ofício. Na realidade, havia
substituído dois homens. Pensei que ele estava fazendo de mim um eletricista;
de fato, estava ganhando, comigo, cinquenta dólares a mais por mês. Os dois
homens que eu substituíra recebiam quarenta dólares por mês cada um, enquanto
eu fazia o trabalho dos dois por trinta dólares.
Este
patrão me fez trabalhar até a morte. Um homem pode adorar ostras, mas ostras
demais vão deixá-lo enfastiado. E assim foi comigo. O excesso de trabalho me
deixou doente. Eu não queria mais ver trabalho. Abandonei o emprego. Tornei-me
um vagabundo, mendigando de porta em porta, perambulando pelos Estados Unidos e
suando sangue em favelas e prisões.
Eu
nascera na classe operária, e agora, aos dezoito anos, estava abaixo do ponto
em que tinha começado. Caíra nos porões da sociedade, jogado no subterrâneo da
miséria sobre o qual não é agradável nem digno falar: estava no fosso, no
abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária da nossa
civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere
esquecer. A falta de espaço me leva aqui a ignorá-la, e devo dizer apenas que
as coisas que vi lá me deram um medo terrível.
Estava
apavorado até a alma. Vi a nu a complicada civilização em que vivia. A vida era
uma questão de abrigo e de comida. Para conseguir abrigo e comida os homens
vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo
e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade,
enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada
relação do casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são
mercadorias, todas as pessoas são compradas e vendidas. A primeira coisa que o
trabalhador tem para vender é a força física. A honra do operariado não tem
preço no mercado. O operariado tem músculos e somente músculos para vender.
Mas
há uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e honra têm como
se renovar. Constituem estoques imperecíveis. Mas os músculos, estes não se
renovam. Quando um comerciante vende seus sapatos, repõe o estoque. Mas não há
como repor o estoque de energia do trabalhador. Quanto mais vende sua força,
menos sobra para si. A força física é sua única mercadoria, e a cada dia seu
estoque diminui. No fim, se não morreu antes, vendeu tudo e fechou as portas.
Está arruinado fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da
sociedade e morrer na miséria.
Aprendi,
ainda, que o cérebro também é uma mercadoria, ainda que diferente dos músculos.
Um vendedor do cérebro está apenas no começo quando tem cinquenta ou sessenta
anos, e seus produtos atingem preços mais altos do que nunca. Mas um operário
está esgotado e alquebrado com quarenta e cinco ou cinquenta anos. Eu tinha
estado nos porões da sociedade e não gostava do lugar para morar. Os canos e
bueiros eram insalubres e o ar, ruim para respirar. Se não podia morar no andar
de luxo da sociedade, podia, pelo menos, tentar a mansarda. Ela existia, a
comida lá era escassa, mas pelo menos o ar era puro. Assim, resolvi não vender
mais meus músculos e me tornar um vendedor de cérebro.
Começou
então uma frenética perseguição ao conhecimento. Voltei para a Califórnia e
mergulhei nos livros. Como me preparava para ser um mercador da inteligência,
achei que devia me aprofundar em Sociologia. Assim, eu descobri, num certo tipo
de livros, formulados cientificamente, os conceitos sociológicos simples que eu
tinha tentado descobrir por mim mesmo. Outras grandes mentes, antes que eu
tivesse nascido, tinham elaborado tudo que eu havia pensado e muitas coisas
mais. Eu descobri que era um socialista.
Os
socialistas eram revolucionários, porque lutavam para derrubar a sociedade do
presente e tirar dela material para construir a sociedade do futuro. Eu,
também, era um socialista e revolucionário. Liguei-me a grupos de trabalhadores
e intelectuais revolucionários, e pela primeira vez entrei na vida intelectual.
Aí descobri mentes aguçadas e cabeças brilhantes. Encontrei cérebros fortes e
atentos, além de trabalhadores calejados; pregadores de mente muito aberta em
seu cristianismo para pertencer a qualquer congregação de adoradores do
dinheiro; professores torturados na roda da subserviência universitária à
classe dominante e dispensados porque eram ágeis com o conhecimento que se
esforçavam por aplicar às questões maiores da Humanidade.
Descobri,
também, uma fé calorosa no ser humano, um idealismo apaixonante, a suavidade do
despojamento, renúncia e martírio - todas as esplêndidas e comoventes
qualidades do espírito. Naquele meio, a vida era honesta, nobre e intensa.
Naquele meio, a vida se reabilitava, tornava-se maravilhosa. E eu estava alegre
por estar vivo. Mantinha contato com grandes almas que punham o corpo e o
espírito acima de dólares e centavos, e para quem o gemido fraco de crianças
famintas das favelas vale mais do que toda a pompa e circunstância da expansão
do comércio e do império mundial. Tudo à minha volta era nobreza de propósitos
e heroísmo; meus dias e noites eram de sol e de estrelas brilhantes; tudo calor
e frescor, como o Santo
Graal,
o próprio Graal do Cristo, o ser humano caloroso, conformado e maltratado, mas
pronto para ser resgatado e salvo no final, sempre ardente e resplandecente,
diante de meus olhos.
E
eu, pobre tolo, julgava ser aquilo apenas uma amostra das delícias de viver que
eu deveria descobrir acima de mim na sociedade. Tinha perdido muitas ilusões
desde os dias em que lera os romances da biblioteca Seaside, no rancho da
Califórnia. E estava destinado a perder muitas das ilusões que me restavam.
Como
mercador da inteligência, fui um sucesso. A sociedade abriu suas portas para
mim. Entrei direto no andar de luxo; mas meu desencanto foi rápido. Sentei-me
para jantar com os senhores da sociedade e com as esposas e mulheres dos donos
da sociedade. As mulheres se vestiam muito bem, admito; mas para minha ingênua
surpresa percebi que eram feitas do mesmo barro que todas as outras mulheres
que eu tinha conhecido lá embaixo, nos porões. A esposa do coronel e Judy
O’Grady eram irmãs sob suas peles e seus vestidos.
Não
foi isto, porém, mas seu materialismo, o que mais me chocou. É verdade que
estas mulheres lindas, ricamente vestidas tagarelavam sobre singelos ideais e
pequenos moralismos; mas, ao contrário do teor de sua conversa mole, a tônica
da vida que levavam era materialista. E como eram egoístas sentimentalmente.
Contribuíam de todas as formas para pequenas caridades e se informavam sobre a
realidade, mas, o tempo todo, os alimentos que comiam e as belas roupas que
vestiam eram comprados com os lucros manchados pelo sangue do trabalho
infantil, do trabalho exaustivo e mesmo da prostituição. Quando mencionei tais
fatos, esperando em minha inocência que aquelas irmãs de Judy O’Grady
arrancassem fora de uma vez suas sedas e joias tingidas de sangue, ficaram
furiosas e excitadas, e leram para mim pregações sobre o desperdício, a bebida
e a depravação inata que causavam toda a miséria nos porões da sociedade.
Quando disse que não podia perceber bem qual era a falta de economia, a
intemperança e a depravação de crianças quase famintas de seis anos que faziam
trabalhar doze horas por noite numa fiação de algodão sulista, aquelas irmãs de
Judy O’Grady atacaram minha vida pessoal e me chamaram de “agitador” — embora
isto, na verdade, reforçasse meus argumentos.
Não
me dei melhor com os senhores da sociedade. Esperava encontrar homens honestos,
nobres e vivos cujos ideais fossem honestos, nobres e vivos. Andei com homens
que estavam nos lugares mais altos - os pregadores, os políticos, os homens de
negócios, professores e editores. Comi carne com eles, tomei vinho com eles,
andei de automóvel com eles e estudei com eles. É verdade, encontrei muitos que
eram honestos e nobres; mas, com raras exceções, não estavam vivos. Realmente
acredito que poderia contar as exceções com os dedos das minhas mãos. Quando
não estavam mortos pela podridão moral, atolados na vida suja, eram apenas a
morte insepulta - como múmias bem preservadas, mas não vivas. Neste sentido,
poderia especialmente citar professores que conheci, homens que vivem de acordo
com o decadente ideal universitário, “a perseguição sem paixão da inteligência
sem paixão”.
Conheci
homens que invocavam o nome do Príncipe da Paz em seus discursos contra a
guerra e que botaram nas mãos dos Pinkertons rifles que abateram grevistas em
suas próprias fábricas. Encontrei homens incoerentes, indignados com a
brutalidade de lutas de boxe e pugilismo, e que, ao mesmo tempo, participavam
da adulteração de alimentos que a cada ano matam mais bebês do que qualquer
Herodes de mãos rubras jamais havia matado.
Em
hotéis, clubes, casas e vagões de luxo, em cadeiras de navios a vapor,
conversei com capitães de indústria e me espantou como eram pouco viajados nos
domínios do intelecto. Por outro lado, descobri que sua inteligência para
negócios era excepcionalmente desenvolvida. Descobri também que sua moralidade,
quando há negócios envolvidos, nada vale.
O
delicado, destacado e aristocrático cavalheiro era um testa de ferro de
corporações que secretamente roubavam viúvas e órfãos. Este cavalheiro, que
colecionava edições de luxo e era patrocinador especial da literatura, pagou
chantagem a um chefão político de queixo duro e sobrancelhas escuras da máquina
municipal. Este editor, que publicou propaganda de medicamentos licenciados e
náo ousou divulgar a verdade em seu jornal sobre os mesmos medicamentos, com
medo de perder o anunciante, me chamou de canalha demagogo porque lhe disse que
sua economia política era antiquada e sua biologia, contemporânea de Plínio.
Este
senador fora a ferramenta e escravo, o pequeno fantoche de uma máquina
indecente e ignorante de um chefáo político; assim eram o governador e seu juiz
no Tribunal de Justiça; e todos os três tinham passes para viajar de graça na
estrada de ferro. Este homem, falando seriamente sobre as belezas do idealismo
e a bondade de Deus, acabara de trair seus camaradas numa questão de negócios.
Aquele outro, pilar da igreja e grande contribuinte de missões no exterior,
obrigava as garotas de suas lojas a trabalhar dez horas por dia por um salário
de fome e, portanto, encorajava diretamente a prostituição. Este homem, que dá
dinheiro à universidade, comete perjúrio em tribunais por causa de dólares e
centavos. E o grande magnata da estrada de ferro quebrou sua palavra de
cavalheiro e cristão quando admitiu abatimentos secretos para um de dois
capitães de indústria empenhados numa luta de morte.
Era
a mesma coisa em todo lugar, crime e traição, traição e crime — homens que
estavam vivos não eram honestos nem nobres; homens que eram honestos e nobres
não estavam vivos. E havia uma grande massa sem esperanças, nem nobre nem viva,
mas simplesmente honesta. Esta não podia errar, positiva ou deliberadamente;
mas errava de maneira passiva e ignorante ao concordar com a imoralidade
generalizada e com os lucros que ela produz. Se fosse nobre e viva, não seria
ignorante, e teria se recusado a dividir os lucros do crime e da traição.
Percebi
que não gostava de viver no andar de luxo da sociedade. Intelectualmente era aborrecido.
Moralmente e espiritualmente, eu me sentia enojado. Lembrava-me de meus
intelectuais e idealistas, meus pregadores sem hábito, professores
desempregados e trabalhadores honestos com consciência de classe. Lembrava meus
dias e noites de sol e estrelas brilhando, quando a vida era uma maravilha doce
e selvagem, um paraíso espiritual de aventuras não-egoístas e um romance ético.
E diante de mim, sempre resplandecente e excitante, vislumbrava o Sagrado.
Então,
voltei à classe operária, na qual havia nascido e à qual pertencia. Não me
preocupava mais em subir. O imponente edifício da sociedade não reserva
delícias para mim acima da minha cabeça. São os alicerces do edifício que me
interessam. Lá, contente de trabalhar, de ferramenta na mão, ombro a ombro com
intelectuais, idealistas e operários com consciência de classe, reunindo uma
força sólida agora para fazer mais uma vez o edifício inteiro balançar. Algum
dia, quando tivermos mais mãos e alavancas para trabalhar, vamos derrubá-lo, com
toda sua vida podre e sua morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu
materialismo estúpido. Então vamos limpar os porões e construir uma nova
moradia para a espécie humana, onde não haverá andar de luxo, na qual todos os
quartos serão claros e arejados, e onde o ar para respirar será limpo, nobre e
vivo.
Esta
é a minha perspectiva. Vejo à frente um tempo em que o homem deverá caminhar
para alguma coisa mais valiosa e mais elevada que seu estômago, quando haverá
maiores estímulos para levar os homens à ação do que o incentivo de hoje, que é
o incentivo do estômago. Conservo minha crença na nobreza e na excelência da
Humanidade. Acredito que a doçura e o despojamento espiritual vão superar a
gula grosseira dos dias de hoje. E, no fim de tudo, minha fé está na classe
trabalhadora. Como diz um francês: “A escada do tempo está sempre ecoando com
um tamanco subindo e uma bota engraxada descendo”.