A peça "Comédia de um ato" está presente na antologia Contos Anarquistas, vários autores, organizado por Arnoni Prado, Foot Hardman e Claudia Leal, lançado pela Editora Martins Fontes. A antologia apresenta contos, textos em prosa e peças curtas de teatro publicados nos jornais operários e anarquistas brasileiros, entre os anos de 1890-1935.
Reproduzo a peça curta para estimular a leitura dos escritos das mãos de lutadores/as da classe operária. A literatura (assim como teatro, a educação, a poesia...) eram práticas fundamentais no lazer e na formação de homens e mulheres de todas as idades que não tinham acesso a educação e ao lazer na ordem capitalista do começo do século XX.
COMÉDIA
EM UM ATO
GIL
O
Estado está sentado em um trono feito de caveiras: empunha o açoite e tem na
cabeça a metade de um boné vermelho e metade de uma coroa real. A decoração da
sala é rica, mas estúpida... as paredes foram pintadas com sangue; ao pé do
trono dorme um chacal que na coleira traz escrito: polícia.
Época,
passada e presente.
A
ação desenrola-se aqui e além.
CENA
I
(O Estado só.)
Eu do alto deste trono em que me
acho, empunhando o cetro que Deus me deu, dirijo ao estalido da chibata esta
humanidade estúpida e imbecil que para nada mais serve, senão para trabalhar e
proporcionar bem-estar a mim e aos meus satélites.
Ah! Quero desfrutá-la, quero
tornar-me um Nero, um Júlio César, um Calígula, ou todos reunidos!
E quem me poderá impedir?
Pois não sou o senhor absoluto? A
minha vontade não é inatacável?
Quem é que ignora que tudo é meu, que tudo me
pertence?
São meus estes montes, são minhas
estas campinas, é minha aquela torrente, e é minha esta humanidade idiota com
tudo quanto possui, e aqui ninguém tem o direito de viver sem o meu
consentimento.
CENA
II
Entra o Clero.)
ESTADO: Quem és tu, o luxuriento
fantasma que assim ousas vir à minha presença? Vens de alguma orgia, nesses
trajes de dançarina grega e com esse pandeiro na cabeça? Diz-me, a que sexo
pertences, és homem ou mulher?
CLERO: Sou o teu braço direito. Sem
o meu concurso, há muito que a tua soberania teria desaparecido, e tu para
viveres terias que ir plantar batatas, como os demais.
ESTADO: Como assim? Chamo-me
Estado.
CLERO: Tu governas, porém sou eu
quem atrofia as consciências e que as preparar a fim que humildemente se
submetam a serem governadas; para isso tenho espalhado sobre toda a superfície
da terra milhões de aves negras, dignos discípulos de Loyola, os quais não
obedevem senão às minhas ordens, e não fazem outra coisa a não ser catequizar a
plebe para que se resigne a obedecer-te e cumprir à risca as tuas e as minhas
ordens; como recompensa a essa obediência passiva, prometo-lhe a glória do
além-túmulo, de onde ninguém poderá voltar reclamar coisa alguma.
E quando alguém quer interpretar as
coisas diversamente do que lhes ordeno, quando ousam falar em liberdade,
igualdade, o punhal do sicário ou as fogueiras do S. Ofício sabem fazê-los
calar para sempre.
Tu tens a força que te garante; mas
ai de ti se ela compreendesse que não tem obrigação alguma de garantir o
bem-estar de outrem, em detrimento próprio; se ela pudesse perceber que, o
enquanto te serve de guarda-costas, tu a exploras tanto quanto a plebe (pois
que ela é composta na sua maioria de filhos do povo), abadonar-te-ia a ti e aos
teus; descansa, porém, que aqui está o clero, pronto a impedir o
desenvolvimento intelectual dos teus comandados.
ESTADO: E por que forma?
CLERO: Por meio das escolas das
igrejas, dos missionários.
Nas escolas aproveitamos a infância
que é fácil de dominar à vossa vontade: incutimos-lhe no espírito que deve
obedecer a Deus, à Igreja e ao Governo e convencemo-la de que somos seus
superiores, que nos deve obediência, que é por vontade de Deus que o mundo é
feito assim, e que nós somos enviados para guiar a humanidade no caminho do
dever a fim de que esta possa alcançar o reino do céu.
Essa infância de hoje serão os
homens do amanhã que, assim preparados pelo clero, continuarão a prestar-te
homenagem e a julgarem-se tuas eternas bestas de carga; para que alguém não se
desvie do caminho que lhe traçamos, temos as igrejas com os respectivos
confessionários, por meio dos quais sabemos tudo o que se passa e podemos
mandar para a fogueira alguma ovelha que entenda pôr o rebanho a perder.
Temos também um Deus bom, justo,
caridoso, infalível, que tudo vê e sabe premiar e elevar ao reino dos céus,
onde tudo é música, alegria e flores, os que sofrem com resignação as misérias
desta vida. Além disso, o povo está convencido de que o nosso Deus também é
perveso, sanguinário, mau, dinamiteiro, eterno foguista dos caldeirões dos
infernos, onde se diverte a fazer ferver os que não seguem à risca o que lhes
manda a santa madre Igreja, da sou ministro pleni-potenciário, com carta-branca
para, em nome de um Deus que não conheço nem desejo conhecer, podermos
amordaçar as consciências, aterrorizar os francos, suplicar os sábios, estuprar
menores e viver à custas de todos esses imbecis, que, com medo de ir visitar o
nosso Deus foguista, fazem o que lhes mando, convencidos de ganharem o reino
das glórias ou... da estupidez.
Enquanto isso, nós gozamos as
delícias da terra e aspiramos a essência dessas beldades peregrinas, traídas
pelos salmos cantados ao som das nossas vandálicas gargalhadas, ah! Ah! Ah!
Isso até quando essas gargalhadas não se transforarem em riso macabro, enquanto
as nossas caveiras não escarnecerem de nós mesmos.
CENA
III
(Os mesmo e um desconhecido.)
ESTADO: Quem és tu, oh mísera
lesma? Como te atreveste a sair da lama em que vegetas?
CLERO: Sim, como conseguiste vir
até aqui?...
ESTADO: Sem que a chibata do
mordomo te retalhasse o focinho?
CLERO: E o que é que queres?
O
desconhecido fez uma reverência e inclinou-se até ficar de quatro para
representar o que é.
DESCONHECIDO: Trim-blim-blim, vai,
vai, vai fechar. O burro é o azar. Última quinela! Atucha*, rapaziada! Quem
mais joga, menos puxa! Olha o zerinho da Santa Casa... Ninguém ganhou. Atucha
de novo, que esta não prestou. Trim, blim, blim... Ao tiro americano, sistema
máuser, feito! Feito o joguinho do caipira, quem mais joga menos tira...
Coragem, rapaziada! Quem não ganha trepa pau da cocanha e desforra-se! Trim,
blim, blim... vai, vai... Prepara... Fecha! Catatrai** fechooo!
(Dirigindo-se aos dois:)
Reverenda Santidade... Sua
Excelência o Estado...
ESTADO: Quem és tu, meu arlequim?
CLERO: Quem és tu, meu arlequim?
CLERO (à parte): Quem será essa ave?
DESCONHECIDO: Ora essa! Querem ver
que, apesar da minha popularidade, há quem não me conhece?
Pois eu sou o Bicho, o afamado
Bicho, o digno continuador da vossa obra...
Tudo quanto tendes posto em prática
não chega para reduzir à impotência os vossos súditos; isso de impostos, latim
e benzeduras não chega. É necessário o joguinho do bicho; ele, sim, os depena
às mil maravilhas: o bichinho impede ao povo de fazer economias, torna-o vadio,
velhaco, desmoralizado, perde o crédito, finta a Deus e ao diabo, empenha e
vende o que possui, e, quando mais nada tem para jogar, vai aos quintais dos
vizinhos e carrega o que lé encontra: roupa, lenha, galinha, tudo lhe serve; e
nesse labutar constante não tem tempo de ver o despotismo dos governos, de ver
o que fazem os representantes das nações, como se executam as leis e tantas
outras coisas.
Já vedes, pois, que graças ao bicho
podeis dormir descansados, porque a maioria dos vossos súditos não tem tempo de
sindicar o que fazeis, se está realmente separada a Igreja o que fazeis, se
está realmente separada a Igreja do Estado, como é que os padres se ocupam de
política, por que é que os frades não pagam impostos para darem espetáculos no
meio da rua, por que há tanta miséria, por que não há trabalho, por que há
tanta ladroeira nos cofres públicos e os culpados passeiam impunes, e os presos
em flagrante, réus confessos, são por fim despronunciados. Podeis dormir
sossegados o sono da inocência, que o Bicho dá-lhes muito que fazer sem
deixar-lhes tempo de se ocuparem de vós. O que eles querem e eu também é poder
jogar mesmo nas bardas da lei!
ESTADO: Bravos! Venha de lá um
abraço e podes jogar à vontade.
(Abraçam-se os três.)
CENA
IV
(Uma voz oculta, cantando:)
A mísera plebe morre de fome,
Por toda parte miséria e peste.
Além só se ouvem ânsias e gritos,
aqui só se vê o azul celeste.
(Com ironia:)
Oh! Torpe matéria!...
Se os triturassem qual pedra bruta
Que foco de miséria irromperia de
tais almas corruptas!
(Todos, assustados:)
O que será isto?
CLERO: Ah! É a voz da igualdade que
clama contra o nosso despotismo. Vamos, em campo! Todos os meios são bons para
sufocá-la. Acendam as fogueiras, preparem os patíbulos!
(Todos:)
Vamos, vamos!
(Saem de braços dados.)
(A mesma voz que se afasta:)
Ah! Vida, vida, incendiada
tragédia, transfigurado horror, sonho transfigurado; macabras contorções de
lúgubre comédia, que um cérebro de louco houvesse imaginado.
(Desce o pano)
O
Despertar, PR, ano I, nº 4, 8 out. 1904.