domingo, 26 de julho de 2015

Programa "Propagar rebeldias" # 01

Faça de conta que você sintonizou uma rádio. No horário a programação apresenta uma seleção de punk rock, músicas carregadas de rebeldia e energia, tudo muito reto e cru. O nome do programa? Você pode chamar de “Propagar rebeldias”.


Eu vagava pelo youtube sem nenhum destino, até pintar a sugestão de ouvir a música “Valetín Alsina“, dos argentinos do Dos Minutos. A letra e a possibilidade de reunir três amigos para fazer uma versão tratando da esquerda do bairro Floresta me animaram. A versão não será uma realidade, mas a música que inspirou a ideia está aí. 

Na última semana conversei com amigos de luta sobre a Irlanda. Motivado pelo papo informal assisti dois filmes sobre os intensos conflitos e o cotidiano violento de Belfast. Belfast lembra punk rock, não é?

Nada melhor do que iniciar com um clássico que está presente em 8 de cada 10 filmes que retratam Belfast nas décadas de 1970 e 1980. 


A banda Rudi pouco conheço. Mas lendo sobre a gravadora Good Vibrations, acabei por encontrar o trio punk Rudi. Fiquei amarrando na sonoridade.

Fecho a programação com uma música para os idiotas que assumem discursos de ódio aos direitos humanos no rolê do rock local. Então, tome uma canção dos Deserdados na sua orelha.


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Uma carta de 1871

Eu tenho uma curta experiência com teatro. Não tenho formação acadêmica, somente cursos e leituras avulsas. Entre um trabalho e outro, tomei conhecimento da Carta aos Artistas de Paris, escrita pelo pintor Gustave Coubert, em 19 de março de 1871, na emblemática revolta popular de Paris, a Comuna. A carta de Coubert fala do seu contexto histórico, é claro. Porém, não é possível deixar de considerar que toca pontos silenciados pela classe artística contemporânea. Deixo com você, caro leitor e leitora, a carta de Coubert.


“Paris, 18 de março de 1871

Meus queridos companheiros artistas,


Vocês me deram a honra, em sua reunião, de me indicar seu presidente. Eu os estou convocando aqui, em nome do comitê que foi designado a auxiliar-me, para reportar-lhes sobre nossas fiscalizações e nossas ações. Aproveitaremos também esse encontro para apresentar diversas idéias que surgiram durante o exercício de nossas atividades, em uma proposta para uma nova reorganização da Administração das Belas Artes, que tem como objetivo promover a Exposição e os interesses das artes e dos artistas.


As administrações anteriores que governaram a França quase destruíram a arte sob sua proteção, ao suprimir sua espontaneidade. Essa abordagem feudal, sustentada por um governo despótico e discricionário, não produziu nada além de arte aristocrática e teocrática, justamente o oposto das tendências modernas, de nossas necessidades, de nossa filosofia, e da revelação do homem manifestando sua individualidade e sua independência física e moral. Hoje, numa época em que a democracia deve reger todas as coisas, seria ilógico a arte, que conduz o mundo, ficar para trás na revolução que está ocorrendo agora na França.



Para alcançar esse objetivo, discutiremos em uma assembléia de artistas os planos, projetos e idéias que nos serão submetidos, no intuito de realizar uma nova reorganização da arte e de seus interesses materiais.



Não há dúvidas que o governo não deve tomar a dianteira em questões públicas, pois não é capaz de carregar em seu interior o espírito de uma nação; consequentemente, qualquer proteção será em si mesma prejudicial. As academias e o Instituto, que apenas promovem a arte convencional e banal, para que sejam julgados por seus integrantes, opõem-se necessária e sistematicamente a novas criações da mente humana e infligem a morte de mártires em todos os homens inventivos e talentosos, em detrimento de uma nação e para a glória de uma tradição e doutrina estéreis.



Vejam, por exemplo, o caso deplorável da École des Beaux-Arts, favorecida e subsidiada pelo governo. Essa escola não apenas desvia nossos jovens, mas nos priva da arte francesa, com suas finas procedências, favorecendo, sobretudo, a tradição túrgida e religiosa italiana, que vai de encontro ao espírito da nossa nação. Essas condições podem apenas perpetuar a arte pela arte e a produção de trabalhos estéreis, sem caráter ou convicção, enquanto nos privam de nossa própria história e espírito sem qualquer compensação.



Portanto, para tomarmos decisões sobre bases mais racionais e mais adequadas aos nossos interesses comuns, no intuito de abolir os privilégios, as falsas distinções que estabelecem entre nós hierarquias perniciosas e ilusórias, é desejável que os artistas (como nas províncias e em todos os países vizinhos) definam seu próprio curso. Deixe que eles determinem como farão as exposições; deixe que definam a composição dos comitês; deixe que obtenham o local onde será a próxima exposição. Isso pode ser resolvido até 15 de maio, pois é urgente que todos os franceses comecem a ajudar o país a se salvar de um imenso cataclismo.



É impossível que qualquer artista não tenha um ou dois trabalhos que ainda não tenham sido exibidos. Para os demais, chamaremos artistas estrangeiros. Excluiremos, certamente, os artistas alemães, mesmo que isso seja contrário aos princípios da descentralização e solidariedade. Mas os alemães, após terem se beneficiado de aquisições francesas e comissões por tanto tempo sem reciprocidade, nos obrigam, por sua traição e espionagem, a tomar tal atitude nesse momento.



O local de encontro será anunciado em breve, bem com o as propostas a serem submetidas aos artistas.



Saudações fraternais,



G. Courbet”

domingo, 19 de julho de 2015

Dossiê Malatesta

Queremos mudar radicalmente tal estado de coisas. E visto que todos estes males derivam da busca do bem-estar perseguido por cada um por si e contra todos, queremos dar-lhe uma solução, substituindo o ódio pelo amor, a concorrência pela solidariedade, a busca exclusiva do bem-estar pela cooperação, a opressão pela liberdade, a mentira religiosa e pseudocientífica pela verdade.

Errico Malatesta (Fonte aqui.)


O dia 22 de julho de 1932 foi marcado pela morte do anarquista italiano Errico Malatesta. A trajetória de vida do Malatesta foi dedicada à luta revolucionária. Viajou e lutou na Europa, no norte da África e na América Latina. O presente dossiê é uma seleção de artigos para conhecer o trabalho militante do Malatesta. 

Atividade realizada em Joinville, ano passado. Informações clique aqui

No Brasil não foi publicado livro biográfico do Malatesta. Mas é possível ler artigos biográficos que apresentam um pouco da história de vida e das visões políticas e estratégicas do companheiro de luta. Eu destaco o artigo do professor Maurício Tragtenberg, que publicou na Folha de São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1983, o artigo "A atualidade de Errico Malatesta". Para ler clique aqui

A Organização Resistência Libertária, do Ceará, integrante da Coordenação Anarquista Brasileira, elaborou um caderno de formação política com artigos do Malatesta. Os artigos correspondem a nossa concepção de anarquismo, teoria e sindicalismo. Clique aqui para acessar o material. 

O portal Protopia oferece um banco de textos de autoria do Malatesta, basta clicar aqui. A minha sugestão é começar a leitura pelo livro "Escritos Revolucionários", clique aqui. É a obra mais indicada para conhecer a concepção de Malatesta sobre anarquismo. 

“Porém, nós anarquistas não podemos emancipar o povo, queremos que o povo se emancipe. Não acreditamos no bem que vem do alto e se impõe pela força; queremos que o novo modo de vida social surja das vísceras do povo, que corresponda ao grau de desenvolvimento alcançado pelos homens e que possa progredir na medida em que eles progridem. A nós importa, portanto, que todos os interesses e todas as opiniões encontrem em uma organização consciente a possibilidade de fazer-se valer e de influir sobre a vida coletiva em proporção a sua importância.”

Errico Malatesta (Fonte aqui.)

O companheiro e pesquisador Felipe Corrêa tem um depoimento em vídeo sobre Malatesta. O vídeo aborda dados biográficos, ambiente político, teoria social, anarquismo, ideologia e estratégia. O material discute a contribuição de Malatesta para o anarquismo especifista, que é defendido pela Coordenação Anarquista Brasileira



"Não se trata, portanto, de chegar à anarquia hoje ou amanhã, ou em dez séculos, mas caminhar rumo a anarquia hoje, amanhã e sempre." 

Errico Malatesta (Fonte aqui.)

sábado, 18 de julho de 2015

Dane-se o STAMMTISCH!!!

Cada cidade tem a classe dominante que merece. Mentira. Cada cidade tem a classe dominante de acordo com sua formação social e histórica. 

Em Joinville, se construiu um imaginário que somos uma cidade “alemã”. Por conta disso, diferentes atividades são realizadas em defesa do imaginário e pela manutenção da tradição, é claro que a classe dominante não lembra que as tradições são invenções, como disse o velho historiador “Ruberval” (como era chamado carinhosamente no corredor do Bloco A, na UNIVILLE).

Os mais velhos costumam sentar numa mesa e beber com o seu grupo seleto de amigos. Os amigos em sua maioria são brancos, de origem alemã. O evento é conhecido por STAMMTISCH. Nos últimos anos, o STAMMTISCH tomou uma proporção entre o público jovem que “se veste bem e tem poder de compra”.

O motivo do post é o STAMMTISCH da Câmara dos Dirigentes Lojistas. O STAMMTISCH é um evento que as pessoas ditas de “origem” se encontram para beber, beber e beber em via pública. O novo “caráter” do STAMMTISCH foi abraçado pelos jovens empreendedores da ACIJ, inclusive da CDL. Ou seja, são os ricos querendo bancar "de alemão". Chega a ser bizarro.

A CDL publicou o regulamento do STAMMTISCH de 2015, que acontece no mês de outubro, na rua da diversão da “playboy”. 

A cláusula 30ª diz; “Por ser evento de cultura germânica, não será permitido samba, pagode, chorinho, rock, e outros estilos que descaracterizem essa etnia.

Qual é o motivo da indignação? Vou pontuar.

  1) Em 2013, esta mesma elite atacou a luta do movimento negro. Conseguiram cancelar o dia 20 de novembro como feriado da consciência negra. Leia aqui.

   2) É a mesma elite responsável pela exploração econômica nos postos de trabalho e será a beneficiada com o projeto da Lei de Ordenamento Territorial, a LOT.

  3) A política cultural da Fundação Cultural de Joinville tem se dedicado a essa elite.


Caso eu fosse fazer a linha de DJ no "anti-STAMMTISCH", já tenho uma seleção prévia para um sonoro foda-se a classe dominante. 

Le Fly para começar em ritmo de festa transglobal radical e futebol

The Buttocks com "nein nein nein". 

Rasta Knast cantando um punk rock brasileiro.

Nena com os seus 99 balões vermelhos

Atari Teenage Riot com sua fúria do rolê eletrônico. 

Entrails Massacre para fazer a digestão.

Nada melhor do que finalizar a seleção com uma demonstração pública da desordem e caos alemão. 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Lembranças de uma greve.

A postagem tem por objetivo lembrar um episódio importante dos/as oprimidos/as no mundo do trabalho nas cidades brasileiras, a greve geral de 1917. No intuito de lembrar, publico um trecho de Edgar Leueroth sobre o terrível episódio da repressão policial contra a luta da classe trabalhadora e um recorte do texto de Nicolina Luiza de Petta. 

Um relato da repressão por Edgard Leueroth, anarquista e editor do Jornal Operário A Plebe.


Edgar no dia da sua prisão na greve geral.

"O enterro dessa vitima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o féretro da Rua Caetano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em caminho da Cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência. Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação (…) No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comício na Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto, onde, em frente à casa da família do operário assassinado, foi realizado outro comício.


12 de julho de 1917 – Greve Geral no país por Nicolina Luiza de Petta. (recortes do texto original*).


No dia 12 de julho de 1917, a cidade de São Paulo parou: uma greve geral de cem mil trabalhadores paralisou o trabalho nas fábricas e transportes. Essa foi a greve de maior impacto do movimento operário no país nos primeiros anos da República. No Brasil, greve também era denominada parede, e o movimento grevista denominado paredista. O termo greve como sinônimo de paralisação do trabalho nasceu na França em referencia a Praça Grève, localizada em Paris, onde os operários desempregados reuniam-se na expectativa de serem chamados para trabalhar.

No início do século XX, crescia no Brasil a organização a mobilização dos trabalhadores com o objetivo de conquistar melhorias de vida e trabalho. Em 1903 foi criada a federação das associações de classe (posteriormente Federação Operária do rio de janeiro); em 1905, organizou-se a Federação Operária de São Paulo. Associações semelhantes foram criadas em outros estados brasileiros. Em 1906 foi realizado o 1º Congresso Operário Brasileiro. As greves tornaram-se constantes e, em alguns momentos, amplas e numerosas. Os anos de 1906, 1907, 1912 e 1913 foram de muita ação, assim como o ano de 1919. Os acontecimentos de 1917, porém, marcaram de forma mais profunda a história da luta de classes no Brasil. Esse ano foi de agitação operária, com a eclosão de greves em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No entanto, o movimento mais intenso nas cidades do Rio de Janeiro, então capital federal, e de São Paulo.

Um conjunto de fatores explica o clima de agitação social em 1917. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) levou à diminuição das importações e ao aumento da demanda por produtos nacionais; em 1916, as fábricas brasileiras ampliaram a produção e o número de empregos aumentou. Mas a guerra foi responsável também por um grande aumento no preço dos alimentos. Com os salários estagnados há anos, os trabalhadores não conseguiam suportar a elevação crescente do custo de vida.

Ao longo do primeiro semestre de 1917 ocorreram greves de diversas categorias, a maior parte no Rio de Janeiro. As principais reivindicações dos operários eram: aumento salarial, redução da jornada diária para oito horas, fim do trabalho noturno para mulheres e crianças, liberdade de associação e de manifestação, redução no preço dos aluguéis, melhoria dos transportes públicos.

No mês de Junho, o movimento grevista ganhou força na cidade de São Paulo com a paralisação dos operários do Cotonifício Crespi, aos quais irão se juntar, no início de julho, trabalhadores de outras fábricas têxteis e também de outros setores.


Fonte da imagem aqui.

No dia 9 de julho, segunda-feira, após um confronto com a polícia em frente à fábrica Antarctica Paulista, os operários em greve seguiram para o bairro do Brás para fazer piquete (impedir a entrada de trabalhadores que não aderiram à greve) na porta da fábrica de tecidos Mariângela. No local, cinquenta policiais a cavalo e trinta armados de fuzis tentaram dispersar a multidão; três operários ficaram feridos.

O governo determinou o fechamento da Liga Operária da Mooca, uma atuante organização operária de orientação anarquista, e da Escola Moderna, instituição de ensino libertária, onde estudavam filhos de operários. A alegação foi a de que eram locais de fomento das rebeliões.


Fonte da imagem aqui

Essas ações, vistas como arbitrariedades pelos trabalhadores aumentaram a tensão social. Como resposta, na noite do dia 9, os grevistas criaram o Comitê de Defesa Proletária (CDP), coordenado por Edgar Leuenroth, fundador do  jornal anarquista A Plebe. A orientação política predominante entre os operários em 1917 era o anarquismo. As tarefas do CDP eram difundir as reinvindicações de interesse dos grevistas.

No dia 10, o sapateiro espanhol José Iñeguez Martinez, 21 anos, baleado no confronto do dia anterior, morreu em decorrência do ferimento. O CDP decidiu fazer do enterro do trabalhador um grande movimento contra a ação violenta da polícia. Por intermédio da imprensa operária, o Comitê convocou a população a acompanhar o féretro.

José Iñeguez Martinez. Fonte da imagem aqui

Na manhã da quarta-feira, dia 11, cerca de dez mil pessoas, de acordo com o jornal operário Fanfulha, caminharam junto ao corpo do rapaz por várias ruas de São Paulo. A polícia, previamente informada do trajeto, colocou seu efetivo guardando as ruas, principalmente a Avenida Paulista, onde se localizavam os palacetes da elite paulistana. Após o enterro, o CDP conseguiu reunir cerca de três mil pessoas em um comício na Praça da Sé.

Foram registrados saques a estabelecimentos comerciais trabalhadores em greve apedrejaram fábricas e bondes e invadiram o Moinho Santista.  À tarde, empresários reunidos buscavam uma solução. Alguns, como Jorge Street, proprietário da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, entendiam que era preciso ceder e atender parte das reivindicações; outros, como o dono do Cotonifício, Rodolfo Crespi, onde começou a greve, mostravam-se irredutíveis, acreditando que a repressão conseguiria desmobilizar os trabalhadores.

Protesto que acompanhou o corpo do operário José. Fonte da imagem aqui.

Não foi o que aconteceu. No dia 12 a cidade parou: a greve atingiu os trabalhadores da Companhia de Gás e da Light, a companhia de energia elétrica, o que paralisou os bonés, principal meio de transporte público, Tinha início a greve geral. Havia cerca de 100 mil trabalhadores em greve na cidade, em um população estimada em 550 mil habitantes.

Um grupo de jornalistas se ofereceu para intermediar as negociações entre os trabalhadores, representados pelo CDP, e os patrões. Durante três dias – 13, 14 e 15 de julho de 1917 – buscou-se uma solução conciliadora. Na segunda-feira, dia 16, com a garantia de que suas principais reivindicações seriam atendidas, os trabalhadores votaram pelo fim da greve. No dia 17, a cidade começou a voltar ao normal, mas a experiência na capital paulista incentivou paralisações no interior e no litoral do estado e em outras unidades da Federação. A greve geral de 1917 mostrou que já não era possível ignorar a presença do operariado no conjunto de forças sócias em luta no Brasil.

Oficialmente, três pessoas morreram durante o conflito: o sapateiro Martinez, um outro operário e uma menina vítima de bala perdida. Calcula-se, porém, que o número de mortos tenha ficado em torno de uma dezena. (...)



* Texto na íntegra no “Dicionário de datas da história do Brasil, Circe Bittencourt (Organizadora), Editora Contexto, São Paulo. 2007

sábado, 4 de julho de 2015

Cultura autogestionária

Nas últimas semanas, por meio da Livraria 36, participei de atividades ligadas ao teatro comunitário e social em Joinville. Nos dois eventos, conversamos sobre diferentes aspectos da relação do teatro com a cidade, do teatro com a esquerda e outros pontos. O pensamento dominante no povo do teatro é a esquerda como unitária e com base em leituras datadas no passado. Me parece que falta ampliar a leitura para outros pontos e aspectos da esquerda, como a de caráter anarquista. Por conta disso, publico um fragmento do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, de Felipe Corrêa. O trecho é um estímulo para debater sobre a cultura do ponto de vista anarquista. 


"4.3.2.4 Cultura autogestionária*

Juntamente com as propostas para a economia e a política, o anarquismo, historicamente, preocupou-se com a esfera ideológica/cultural.[i]  Sakae (apud Pelletier, 2004, p. 234) afirma, em 1919: “por mais operários que sejamos, a situação não se resume a comer bem. Temos reivindicações que vão mais longe.” Essa afirmação envolve uma condição, comum entre os anarquistas, de compreender o conjunto de necessidades humanas para além dos aspectos materiais. Se a religião, a educação e, mais recentemente, a mídia, vêm sendo responsáveis por legitimar a dominação, o anarquismo propõe uma cultura distinta, que legitime sua proposta de autogestão.


Espaço de criação e produção dos cartazes estudantis e operários na revolta no mês de maio, em 1968, em Paris.

Para os anarquistas, a autogestão econômica e política deve ser acompanhada de uma cultura autogestionária, forjada em bases ideológicas e em uma ética pautada em valores, capaz de sustentar seu projeto econômico e político – algo que Bakunin (1972, p. 249) chamou de uma “nova fé”, e o coreano Chaeho (2005, p. 375) de “cultura das massas”, a qual deveria “destruir pensamentos culturais servis”.

Rudolf de Jong (2008, p. 63), anarquista holandês, também trata do tema, em 1975, ao enfatizar que “no anarquismo, os valores humanos desempenham uma parte importante”. Essa ética anarquista é o elemento universal promovido transversalmente em todos os contextos, pautada, no caso de uma sociedade futura, com a autogestão funcionando plenamente, nos seguintes valores: liberdade individual e coletiva, no sentido de desenvolvimento pleno das faculdades, capacidades e pensamento crítico de cada um e de todos, fora da dominação; igualdade, em termos econômicos, políticos e sociais, promovida por meio da autogestão e incluindo questões de gênero e raça; solidariedade e apoio mútuo, sustentando relações fraternas e colaborativas entre as pessoas e não de individualismo e competição; estímulo permanente à felicidade, à motivação e à vontade.

Manifestação contra o aumento da tarifa do transporte coletivo em Joinville, em 2014. Fotografia do Renan B. 


Harrison (1947), nesse sentido, escreve: “devemos expandir as associações voluntárias de acordo com nossos interesses comuns para a inovação científica e a produção do belo e para ampliar nossas liberdades sociais”. A intervenção dos anarquistas de acordo com esses valores éticos deve fortalecer as associações, de maneira a promover a cultura autogestionária defendida pelos anarquistas.

Um dos aspectos muito desenvolvidos no anarquismo foi a educação, por meio da discussão sobre a pedagogia libertária. Reclus (2002, p. 108) explica, em 1897: “o ideal dos anarquistas não é suprimir a escola, ao contrário, fazê-la crescer, fazer da própria sociedade um imenso organismo de ensinamento mútuo, onde todos seriam simultaneamente alunos e professores”. Essa ampliação da educação, estendendo-a ao conjunto da sociedade, é fundamental para estimular os valores condizentes com a prática da autogestão.

Tal educação é, ao mesmo tempo, integral, pois busca fortalecer completamente o desenvolvimento individual: intelectualmente, por meio do conhecimento científico das distintas áreas da vida e do estímulo permanente à cultura; tecnicamente, preparando para o trabalho e capacitando para a realização de tarefas manuais e intelectuais; fisicamente, tendo por objetivo promover a saúde e bem-estar.

O anarquista espanhol Francisco Ferrer y Guardia enfatiza, em 1908, que o objetivo anarquista na educação é criar

homens capazes de evoluir incessantemente; capazes de destruir, de renovar constantemente os meios, renovar-se a si mesmos; homens cuja independência intelectual seja a força suprema, que nunca se sujeitem ao que quer que seja; dispostos a aceitar sempre o melhor, felizes pelo triunfo das novas idéias e que aspirem a viver vidas múltiplas em uma única vida. (Ferrer y Guardia, 2006, p. 67-68)

O conceito-chave da pedagogia libertária é a promoção da educação por meio da liberdade e para a liberdade, criando permanentemente uma humanidade completa, com corpo e mente plenamente satisfeitos.

Eduardo Bez, do Grupo Morro do Ouro, declama as suas poesias no Sarau 1º de maio, em Joinville, no ano de 2015.

Também faz parte dessa cultura autogestionária o investimento em lazer. Se, por um lado, o trabalho e as decisões estão no centro da sociedade autogestionária, o lazer possui, simultaneamente, lugar de destaque. No tempo livre, os anarquistas consideram fundamental a participação em atividades que envolvem esportes, artes, música, televisão, cinema, teatro, etc., tanto para o descanso, como para a própria instrução cultural. Os valores citados anteriormente constituem os fundamentos dessa produção popular e autogestionária do lazer. Evidentemente, os meios de comunicação defendidos pelos anarquistas são autogeridos, possuem ampla participação e, pautados nos valores anarquistas, promovem a diversidade e o pensamento crítico, informando, discutindo, divertindo. A ética promovida permanentemente por meio dos valores, a educação e o lazer constituem as bases da cultura autogestionária, essa “nova fé”, capaz de dar a sustentação subjetiva para a construção do projeto objetivo anarquista.




·        *  Fragmento de leitura do livro “Bandeira Negra: rediscutindo o anarquismo”, do Felipe Corrêa. É possível baixar o livro completo aqui ou comprar aqui. As referências citadas no fragmento estão nos links que mencionei nas linhas anteriores. Em caso de dúvidas, basta escrever para maikon.jean.duarte@gmail.com

[i] Silva (2005, p. 3), refletindo sobre o papel da cultura no anarquismo, afirmou: “Para se compreender o movimento anarquista [...] é preciso ter em mente que, apesar dos homens e mulheres que os configurava serem, em sua maioria, trabalhadores, não se pode resumir sua atuação ao âmbito sindical. A intensa e inovadora produção artística e literária sempre foram marcas dos anarquistas. [...] Nas relações interpessoais, na conduta moral, no trabalho, na educação, nos contatos afetivos, em todos os campos o anarquismo se manifesta. Ele se pratica nas ruas, no sindicato, no teatro, na fábrica e em casa. Assim, para além de um movimento, há uma cultura anarquista.”